segunda-feira, 4 de maio de 2015

Os olhos dos mortos retornam nos recém-nascidos no filme "I Origins"


Aos 21 anos o diretor Mike Cahill teve um estranho sonho e quando acordou sentiu a necessidade de escrever a seguinte frase: “Os olhos dos mortos retornam nos recém-nascidos”. Catorze anos depois tornou-se interessado no tema da biometria através íris. Junto com a lembrança da misteriosa frase do passado, Cahill escreveu o argumento do roteiro do filme “I Origins” (2014) – um biólogo molecular obcecado pelo design complexo do olho humano quer terminar de vez o debate entre criacionistas e evolucionistas, conseguindo preencher definitivamente a lacuna do mapeamento evolutivo do órgão humano, provando a inexistência de Deus. Sem ser um filme New Age disfarçado, Cahill opõe os argumentos dos dois lados, mostrando que Ciência e Espiritualidade podem andar juntas, embora em planos separados da existência. E o que as uniria seria o acaso, representado por uma misteriosa garota com a íris multicolorida, a "Sophia" da mitologia gnóstica. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

De todos os órgãos do corpo humano, o olho é aquele que ao longo da História foi mais investido de significados poéticos, religiosos, artísticos e científicos. “O olho é a janela da alma”, dizem. Por trás desse provérbio está uma constatação científica: o olho é o único órgão que não muda a vida inteira, mantendo a mesma forma e padrão.

Desde os tempos em que Mike Cahill (Another Earth e Boxers and Ballerinas) estagiava na National Geographic e tomou contato com a história da foto da menina afegã que somente foi reconhecida 17 anos depois através da biometria através da íris, o tema passou a interessar o diretor. E principalmente por uma frase que Cahill escreveu, segundo disse o diretor em entrevistas, após acordar de um sonho: “os olhos dos mortos retornam nos recém-nascidos” – Film Interview: “I Origins” Director Mike Cahill Talks Post Credit Ramifications, Follow Ups and Religious Philosophy.



Mas o diretor não caiu na tentação fácil de fazer um filme new age ou espiritualista com apologias sobre a religiosidade e reencarnação. Ao contrário, o filme I Origins joga o espectador em uma narrativa onde são opostos os argumentos tanto do evolucionismo quanto do criacionismo, sem usar termos religiosos ou místicos.

Cahill está no terreno de um subgênero de filmes de sci fi chamado “psicodramas alt.sci-fi”, isto é, filmes que utilizam argumentos sci fi para filtrar temas bem humanos com baixos orçamentos e nenhum efeito especial.

I Origins é preciso na utilização de dados científicos e tecnológicos reais: o programa nacional de biometria na Índia, ratos daltônicos com a visão modificada para enxergarem colorido, vermes sem olhos que são alterados geneticamente para desenvolverem a célula que dará origem ao design de um olho primitivo etc.

E é sobre esse pano de fundo tecnocientífico contemporâneo que Cahill vai traçar as perplexidades de um cientista absolutamente ateu e cético onde, aos poucos, vai percebendo que a sua fixação em pesquisar a evolução do design da íris humana o conduz a um campo onde Ciência e Misticismo se confundem.

O Filme


Um biólogo molecular particularmente alérgico a temas religiosos ou espirituais, Ian Gray, apaixona-se por uma misteriosa garota chamada Sofia em um festa de Halloween. Ironicamente, Sofia é uma garota de gostos místicos que dá início a uma série de acontecimentos que poderá, ou não, abalar as crenças racionais e científicas do protagonista.

Ian é especializado na evolução do olho humano. Mais do que um objeto científico, é uma obsessão pessoal: ao longo da vida fotografou centenas de olhos com o propósito de provar que a complexidade do design do órgão nada tem a ver com algum criador inteligente como Deus. Se ele encontrar o gene PAX6, então acabará com toda a discussão entre criacionistas e evolucionistas – conseguirá preencher a lacuna da história do órgão, conseguindo mapear a lógica do progresso da evolução. Para Ian, dessa forma, toda a discussão entre Deus e a Ciência se encerraria em favor da Razão.

Claro que pelo título do filme, pôster promocional e por se tratar de uma parte do corpo humano tão cercada de conotações poéticas e místicas, o espectador desconfiará que a narrativa penderá para o lado do espiritualismo. Porém, a narrativa de Mike Cahill não permite que o filme se transforme em um New Age disfarçado. Pelo contrário, o filme não usa palavras religiosas e a palavra “reencarnação” não é citada uma vez. Somente uma vez é feita uma alusão à palavra “alma”, o que quase faz Ian pular no pescoço da sua esposa e companheira de pesquisas laboratoriais.

Através de uma narrativa de sci fi que não conta com momentos de ação nem espetáculo, mas tem como principais trunfos o roteiro bem amarrado com frases sensacionais, sensualidade e informações científicas, Cahill consegue mostrar como a Ciência e a espiritualidade podem andar juntas.

Como, por exemplo, na sequência em que Sofia desafia o sentido das experiências com os vermes cegos. Ian manipula geneticamente os vermes para criar um olho primitivos neles para, então, mapear a evolução do órgão. Os vermes têm apenas dois sentidos: olfato e tato. A noção de luz é completamente desconhecida para eles. Mas a luz existe e é real.


Seguindo a mesma lógica científica, os cinco sentidos humanos poderiam ser igualmente limitados tal como os vermes: seríamos incapazes de detectar uma realidade que habitualmente chamamos de “mágica” ou “espiritual”, pois estaria num campo invisível à nossa percepção. Ou seja, a mesma conclusão do Mito da Caverna de Platão a partir da própria lógica científica.

Sophia e “O Viajante”


Explicitamente a narrativa do filme I Origins se estrutura em torno de dois personagens marcantes nos filmes gnósticos: o mito de Sophia representado pela garota misteriosa que vai transformar a vida do protagonista. E o próprio protagonista que reúne as características daquele que denominamos como “O Viajante” – em postagens anteriores discutimos como a subjetividade contemporânea expressa pelos filmes gnósticos representa os protagonistas em torno dos arquétipos do Viajante, do Detetive e do Estrangeiro – sobre isso clique aqui.

Um dos mais importantes aeons da mitologia gnóstica, Sophia corresponde a um importante arquétipo da personalidade humana: o do conhecimento, não tomado no sentido racional. Mas um conhecimento que instiga no protagonista a necessidade pela busca da gnose, isto é, fazê-lo sair do estado de alienação para que se re-conecte ao conhecimento eterno, a uma totalidade perdida que teria a ver com a própria origem humana.

Ian Gray é um cientista bem sucedido: alcança seus propósitos, consegue encontrar o gene que supostamente é a origem do complexo design do olho, publica livros e é reconhecido midiaticamente no debate entre criacionistas X evolucionistas. O biólogo evolucionista e militante do ateísmo Richard Dawkins teria em Ian Gray o seu verdadeiro campeão do Darwinismo.

Porém, falta algo... a íris multicolorida dos olhos de Sofia, o mistério em torno da sua história e a enigmática sensualidade despertam nele sentimentos contraditórios: o gosto pelo misticismo de Sofia o irrita. Ian a chama de infantil, mas também sente-se inexplicavelmente atraído por ela. Somente a viagem para a Índia (país que promove o primeiro programa nacional de biometria por reconhecimento da íris e, ao mesmo tempo, país símbolo da religiosidade e misticismo) o fará sair da sua zona de conforto, colocando em xeque os paradigmas da ciência.

E o mais importante: paradigmas que serão quebrados através dos próprios métodos científicos. A virtude do filme I Origins é a de não fazer apologias para nenhum dos lados. É como se Mike Cahill quisesse dizer o tempo inteiro: Tudo bem! Ciência e Espiritualidade podem ser amigas. Mas não estão no mesmo plano: a Ciência é o método científico sobre coisas que podemos testar no mundo físico. Enquanto a Espiritualidade está além da física, é metafísica.

Mas apesar disso, sem saberem, Ciência e Espiritualidade estão continuamente interagindo. É como a metáfora do verme proposta pela garota Sofia. Aquele verme pode sentir o cheiro de uma boa maçã que está apodrecendo. Mas ele não sabe que o seu sentido do olfato está interagindo com um fenômeno que só possível acontecer pela ação da luz em um plano que  ignora completamente pela limitação dos seus sentidos.

Da mesma forma seríamos nós: percebemos fenômenos que operam num plano que não conseguimos influenciar, apenas interagir.
 
 
Via http://cinegnose.blogspot.com.br/

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