Este texto compõe o material de leitura do curso virtual “História da Umbanda” com Alexandre Cumino, mais informações acesse o site do ICA.
Uma prova de que Kardec, no mínimo,
ouviria o que o Preto-velho e o Caboclo têm a dizer é o diálogo travado
entre Kardec e “Pai César”, um negro nascido na África e levado para
Louisiana quando tinha 15 anos. Esta entidade lembra muito as
características que identificam um “Preto-velho”, embora lhe falte a
ideologia umbandista inseparável da entidade de Umbanda, no entanto não
foi tratado com diferença por Kardec e muito menos discriminação, como
podemos ver abaixo:
Preto-velho fala com Kardec
Pouca gente sabe, mas numa das reuniões
realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Allan Kardec
evocou um Espírito que, segundo as terminologias da cultura brasileira,
poderia ser classificado como um “preto-velho”. Esse encontro, narrado
pelo próprio Kardec nas páginas da sua histórica “Revista Espírita”
(Revue Spirite), de junho de 1859, aconteceu na reunião do dia 25 de
março daquele mesmo ano. Pai César – este o nome do Espírito comunicante
– havia desencarnado em 8 de fevereiro também de 1859 com 138 anos de
idade – segundo davam conta as notícias da época –, fato este que
certamente chamou a atenção do Codificador, que logo se interessou em
obter, da Espiritualidade, mais informações sobre o falecido, que havia
encerrado a sua existência física perto de Covington, nos Estados
Unidos. Pai César havia nascido na África e tinha sido levado para a
Louisiana quando tinha apenas 15 anos.
Antes de iniciar a sessão em que se faria
presente Pai César, Allan Kardec indagou ao Espírito São Luís, que
coordenava o trabalho, se haveria algum impedimento em evocar aquele
companheiro recém-chegado ao Plano Espiritual. Ao que respondeu São Luís
que não, prontificando-se, inclusive, a prestar auxílio no intercâmbio.
E assim se fez. A comunicação, contudo, mal iniciada, já conclamou os
participantes do grupo a muitas reflexões. Na sua mensagem, Pai César
desabafou, expondo a todos as mágoas guardadas em seu coração, fruto dos
sofrimentos por que passara na Terra em função do preconceito que
naqueles dias grassava em ainda maior escala do que hoje. E tamanhas
eram as feridas que trazia no peito que chegou a dizer a Kardec que não
gostaria de voltar à Terra novamente como negro, estaria assim, no seu
entendimento, fugindo da maldade, fruto da ignorância humana.
Quando
indagado também sobre sua idade, se tinha vivido mesmo 138 anos, Pai
César disse não ter certeza, fato compreensível, como esclarece o
Codificador, visto que os negros não possuíam naqueles tempos registro
civil de nascimento, sobretudo os oriundos da África, pelo que só
poderiam ter uma noção aproximada da sua idade real. A comunicação de
Pai César certamente ajudou Kardec, em muito, a reforçar as suas teses
contra o preconceito, o mesmo preconceito que o levou a fazer, dois anos
depois, nas páginas da mesma “Revista Espírita”, em outubro de 1861, a
declaração a seguir, na qual deixou patente o papel que o Espiritismo
teria no processo evolutivo da Humanidade, ajudando a pôr fim na
escuridão que ainda subjuga mentes e corações: “O Espiritismo,
restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a
superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas
as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens
corpóreas e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os
estúpidos preconceitos de cor.”
O texto que acabamos de ler acima foi disponibilizado por nosso irmão Roberto (Mestre Azul) em seu blog,
consultado na data de 21 de fevereiro de 2009, neste mesmo endereço
eletrônico o irmão, Mestre Azul, cita sua fonte: Boletim n° 2090,
19/04/2008, SERVIÇO ESPÍRITA DE INFORMAÇÕES, Lar Fabiano de Cristo, Rio
de Janeiro.
Este diálogo acima pode ser confirmado no
livro “Tesouros da Revista Espírita de Allan Kardec”, Ed. FEESP, 2008,
pp.101-102, e abaixo coloco apenas um fragmento do texto original:
Kardec: Em que o senhor utiliza seu tempo, agora?
Pai César: Procuro me esclarecer e pensar em que corpo seria melhor eu nascer de novo.
Kardec: Quando estava vivo, o que achava dos brancos?
Pai César: Achava que eram bons, mas tinham orgulho de uma brancura que não é mérito deles [...].
Kardec: O senhor disse que estava procurando um corpo para reencarnar; vai escolher um corpo branco ou negro?
Pai César: Branco, porque o desprezo das pessoas me faz sofrer [...].
Podemos observar um espírito que na
última encarnação foi um negro, desencarnado já com idade suficiente
para considerar-se ancião, um “negro velho”, se comunicando com Kardec
e, embora para muitos “negro-velho” ou “negro-ancião” e “preto-velho”
seja a mesma coisa, para Umbanda “preto-velho” se insere num contexto
doutrinário.
Reflete um arquétipo de sabedoria,
iluminação e superação de todos os obstáculos que a vida lhe ofereceu.
Preto-velho não é o que “sofreu” e se “amargurou”, e sim aquele que
esteve e está acima de todo o sofrimento. “Preto-velho” é aquele que
representa a vitória acima de todos os grilhões que a vida nos impõe,
“preto-velho” é aquele que nos ensina que maiores são os grilhões da
ilusão que nos prendem ao ego e a vaidade de crer que uma raça possa ser
superior à outra. “Preto-velho” ensina que quando o “branco” lhe
colocou correntes estava acorrentando a si mesmo nas leis inexoráveis de
causa e efeito, que mais dia menos dia haveria de pesar na alma dos
“senhores”.
“Preto-velho” é aquele que ensina que
aguentar firme e na fé as “chibatadas” que a vida nos dá confere valores
de uma força espiritual que em nada se compara com a força física.
“Preto-velho” é “símbolo” de Umbanda, figura que por si só já exerce um
impacto doutrinário. Pois é este humilde, ex-escravo, que foi
acorrentado e muito apanhou nos troncos de engenho que está ali para
ouvir nossas queixas sobre a vida.
É da boca do velho de fala baixa e mansa
que vamos colher a essência de sabedoria para a vida. Diante deste
“arquétipo”, mesmo em completo silêncio, somos levados à reflexão sobre
nós mesmos e nossa postura diante da vida, repensamos o que costumamos
chamar de “problemas”, encontrando no “modelo preto-velho” um caminho
que transcende a personalidade daquele espírito para firmar-se como
elemento ritualístico, a forma pela qual estas entidades “escolheram”
para manifestar-se na religião. Seguindo os velhos iluminados, os
“originais” e “ancestrais” “pretos-velhos”, espíritos missionários que
pediram, escolheram e foram escolhidos para nascer em meio à escravidão,
aqui no Brasil, com a finalidade de trazer um pouco de luz a tantas
almas presas no cativeiro material e espiritual.
Estes milhares de espíritos, “Pai José”,
“Pai João”, “Pai Benedito”, “Pai Antônio” ou “Vovó Maria” etc., com
nomes cristãos de escravos batizados, seguem o modelo daqueles que junto
aos “Caboclos” fundaram a Umbanda e nela definiram arquétipos
(“Preto-velho” e “Caboclo”) que são em si mesmos a figura de seus
iluminados fundadores. Mais tarde viriam outros arquétipos como ciganos,
baianos, boiadeiros, marinheiros e etc. nesta Umbanda que tem um perfil
altamente “inclusivo”, que não exclui nada nem ninguém.
Fica assim uma reflexão sobre o que é o
“preto-velho” enquanto elemento, valor e símbolo indissociável da
cultura e religião umbandista. “Preto-velho” expressa muito mais que
“raça negra” e “idade avançada”, é o identificador de um dos elementos
formadores da Umbanda. Nem todo “preto-velho” foi um velho negro, mas
todos que assim se manifestam optaram por esta forma de manifestação,
portanto que não se confunda opção com falta de opção. Por mais que
especulemos nunca sabemos em profundidade com quem nos comunicamos no
mundo espiritual; além de um nome, de seu perfil e forma plasmada; e é
por isso que vale sempre avaliar o teor das mensagens e a vibração
própria de cada entidade. Por este fundamento é que Gabriel de Malagrida
em sua memorável manifestação primeira teria dito se é que preciso de
um nome, seja então Caboclo das Sete Encruzilhadas, por que não haverá
caminhos fechados para mim. Já surge com nome simbólico e explicando o
simbolismo do mesmo.
Os guias espirituais e mentores na
Umbanda se valem da forma de apresentação como recurso psicológico e
emocional para alcançarem certo objetivo com relação a quem lhes
procura, assim a figura “preto-velho”, como as outras, exerce impacto
doutrinário, de valores imprescindíveis para a construção da identidade
umbandista.
Via http://autoconhecimento.org/2012/09/30/preto-velho-fala-com-kardec/
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