quinta-feira, 5 de julho de 2012

Despertar para o Real



Você precisa encarar a realidade. Talvez você já tenha ouvido essa frase, talvez não. Talvez já tenha dito isso para alguma pessoa. Alguém que parecia ter ideias absurdas e pouco condizentes com a percepção daquelas que estavam ao redor teve consequentemente chamada a sua atenção sendo dito “você precisa encarar a realidade”. Entretanto, uma coisa é encarar a realidade, outra é encarar o Real.

Aqui faremos a distinção de dois planos distintos: o Simbólico e o Real. O Real é o plano da falta de sentido, sendo constituinte dele os próprios objetos do mundo em si mesmos. É o objeto  que está inominável porque não se apresentou para uma consciência. A partir do momento que este objeto vem à consciência, ele recebe uma referência simbólica, ganha um nome, um propósito, um sentido de existir. Por sua vez, é o plano Simbólico que deve dar significado ao que existe, sendo este último, portanto, o plano dos múltiplos sentidos.
O que chamamos no senso comum de realidade não é propriamente uma referência ao Real enquanto tal. Se quisermos ser mais precisos, podemos dizer que o que comumente chamamos de realidade, e criticamos quando alguém parece fugir dela, é um sistema simbólico coletivo, enquanto o Real é precisamente aquilo que escapa à realidade, isto é, o impossível de ser simbolicamente representado. Quando alguém em simples senso comum diz que outra pessoa não está vendo a realidade, ela está dizendo que aquela pessoa não está compartilhando desse mesmo sistema simbólico que ela é integrante. A realidade é, no fundo, uma grande fantasia constituída por símbolos compartilhados, que mediatizam o encontro do sujeito com o que é inacessível para ele de forma direta, isto é, o Real. Todo contato do sujeito com o semelhante e o mundo é sempre mediatizado por essa barreira. O Real seria a realidade objetiva e universal perdida, nua e carente de significação, o que é próprio da objetividade em si mesma. O Simbólico, por sua vez, é a própria linguagem, a cultura e toda produção tipicamente humana, não encontrada em outras espécies, que abarca o Real para dar-lhe significação.
Então espere! Você está dizendo que o ser humano vive dentro de uma trama simbólica de significados culturais, marcado pela subjetividade, e que a mesma impede o contato direto  com o Real, isto é, a própria realidade objetiva?
Sim. O Real é a realidade objetiva e perdida, pois enquanto o ser humano está no plano do Simbólico, isto é, da linguagem e das mediações culturais, ele sempre se relacionará com ela a partir de sua subjetividade.
Ah, mas então você está me dizendo que cada ser humano vive sua própria fantasia e que somos todos loucos! Não há acesso ao Real?
Quase, mas não apenas isso. Não podemos esquecer que somos seres sociais, e que os próprios significados e percepções são muitas vezes socialmente construídos, e não erigidas individualmente. Não são subjetividades em si próprias, mas intersubjetividades. Sempre há a troca de valores com o social.
Quanto ao acesso ao Real, a Ciência sempre tem buscado isso, embora nunca consiga alcançar, pois o próprio muro que a subjetividade constitui impede essa passagem. Mas não que esse muro seja, de fato, intransponível, pois muitas vezes ele cede, e o Real invade o Simbólico. Isto é precisamente o trauma: a invasão do não simbolizado dentro do campo simbólico. Explicarei melhor.
Se o Simbólico constrói uma fantasia para lhe servir de tela protetora, cada sujeito acaba vivendo dentro de sua própria fantasia pessoal, que de algum modo está sempre ligada à fantasia coletiva chamada realidade. Por este motivo é tão difícil fazer alguém pensar diferente quando está obcecado pela sua própria fantasia, pois a fantasia constitui a realidade psíquica para cada sujeito, sendo igualmente uma defensiva ao traumático. É uma base segura, e quando desconstruída de forma abrupta, tem suas estruturas psíquicas abaladas. Isso seria o trauma.
Mas o que tem o Real de tão traumático?
O Real é o plano do sem sentido. Uma vez que o sentido é dado pelo Simbólico, o Real seria a “realidade crua”, o objeto em si, sem nenhuma significação. É o próprio niilismo. O próprio vazio existencial. Podemos tentar simbolizar (isso soa contraditório, eu sei) pela própria Morte. Não a morte física em stricto sensu, mas a Morte como a própria não existência. Diferenciarei as duas utilizando letra minúscula para o primeiro, e maiúsculo para o significado existencial. A estrutura psíquica do ser humano não está preparada para a Morte, pois  sendo esta uma estrutura Simbólica, ela não está preparada para contato com o Real. Sempre que algo que a estrutura psíquica de um sujeito é incapaz de simbolizar surge, a estrutura sofre um choque. Nisso consiste o traumático. A incapacidade de lidar simbolicamente de forma eficaz com o ocorrido é desencadeadora do sofrimento.
As religiões são construções simbólicas que visam erigir uma grande fantasia, comum a muitos indivíduos, que seja forte o suficiente para abafar o Real. A própria promessa de vida após a morte, comum a muitas religiões, deriva disto. É da religião o dever de vencer a Morte, dar sentido ao sem sentido.
Entretanto, o Budismo é uma religião que foge a essa lógica, e eu acredito que por este motivo ele é tão singular. Afinal, qual a meta do budista? O Nirvana, uma palavra sânscrita que significa apagamento, extinção. Em geral, esse termo serve para designar a extinção do desejo humano, o aniquilamento da individualidade que se funde na alma coletiva, um estado de quietude e felicidade perfeita. Vemos que o Budismo visa justamente encarar o que todos não querem ver: a Morte.
A própria história de Sidharta, o Buda (o Desperto!), é um excelente ensinamento. Profetizado como o futuro rei do mundo ou seu redentor, seu pai procurou excluir de sua vida tudo o que poderia lhe revelar a senilidade, a dor ou a morte. Ou seja, tudo que é da ordem do trauma.  Crescido em um ambiente de grande felicidade, Sidharta resolve ultrapassar os limites que lhe foram impostos pela fantasia, e atravessar os muros de seu palácio (do Simbólico?), se deparando com a velhice, a doença e a morte. Sidharta foi protegido do Real de todos os modos, mas igualmente buscou a ele. Esta é uma ótima metáfora da própria existência de cada ser humano.
Porém, não creio que o caminho de todos deva ser de nos tornarmos Budas. O que foi da vida de Sidharta cabe unicamente a ele e aos que desejam segui-lo.
O que podemos extrair é que se a vida simbólica, típica da espécie humana,  permite o acesso da criança ao mundo cultural, ela é também uma prisão. Fugindo da história contada no Mito da Caverna de Platão que faz uma diferenciação infantil entre despertos e adormecidos, vemos que há na própria constituição de cada sujeito a sua alienação. Todos estão alienados, uma vez que essa alienação acontece a partir do momento que a criança abandona o Real para entrar no Simbólico. Ou seja, a partir do momento que ela é humana. Porém, nossa história não acaba assim. Não cabe aqui final trágico, mas sim o esforço de trazer a possibilidade de construção de novos sentidos para a existência humana.
A maioria de nós vive a vida em certa homeostase psíquica mais ou menos estabelecida, quando, de repente, alguma coisa terrível acontece. Surge uma doença grave, uma separação amorosa, uma grande baixa na carreira profissional, ou qualquer outra coisa que seja da ordem do traumático, do difícil de lidar. O que acontece neste momento? Perdemos a homeostase psíquica, a fantasia em que vivíamos é abalada, quando não rompida. Quando isto ocorre, o que resta fazermos? É preciso recompor a homeostase através de uma nova articulação. Destituindo de nossos falsos ancoramentos simbólicos, podemos esvaziar a significação patológica de nossas vidas para podermos construir um novo acesso ao Real. É preciso um Despertar para sair desse sonho que agora se faz angustiante. Não aquele despertar infantil platônico que serve apenas para que as pessoas apontem o dedo uns aos outros, chamando uns aos outros de “alienados” e disputando para saber quem está mais “acordado”.
É na verdade um Despertar pessoal e relativo a cada sujeito, sendo que as regras do despertar individual  só podem ser aplicadas àquele próprio desperto, e não constituem modelos universais. É o desvencilhar de cada um para encarar o Real e dizer: “Eu estou pronto para mais um dia de luta. Mostre-me o que você tem hoje para mim”.
Bibliografia indicada:
A quem gosta do assunto aqui abordado, eu indico para aprofundamento os volumes da obra “Fundamentos da Psicanálise: de Freud a Lacan”, de Marco Antonio Coutinho Jorge.

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Fonte : http://www.deldebbio.com.br/2012/07/05/despertar-para-o-real/

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