segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Viagem (Cloud Atlas, 2012)



É sempre estimulante, e emocionante, quando vamos ao cinema e somos surpreendidos por um filme que nos “obriga” ficar refletindo, MUITO TEMPO, sobre o que acabamos de assistir e decifrarmos todas as mensagens, ligações e simbolismo daquelas imagens e narrativa. Se na década de 1960 os cinéfilos foram presenteados por “2001- Uma Odisséia no Espaço”, em 1970 “Apocalypse Now”, em 1980 “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, em 1990 “Magnólia” e em 2000 “Cidade dos Sonhos”, só pra citar um exemplo de cada década, já podemos dizer que só o começo dessa de década de 2010 já está notável, já que tivemos “A Árvore da Vida” e esse “A Viagem” para nos fazer sentir essa experiência. 

O filme, baseado em um livro de 2004 de David Mitchell, é uma literal viagem por várias épocas e histórias diferentes. Há um jovem advogado que viaja em um barco em plena época de escravatura; um jovem músico bissexual que está trabalhando em uma composição que fará sua fama no início do século XX; uma jornalista que investiga uma conspiração empresarial na década de 1970; um editor senil que é colocado em um asilo à força, por seu irmão, na atualidade; uma “sintética” que começa a questionar seus deveres em uma Coréia futurista e uma tribo pós-apocalítica envolta em um misticismo enigmático. 

Acredite, o FABULOSO roteiro dos Wachowsky & Tykwer consegue fazer TODO o sentido no modo como conecta todas as diferentes seis narrativas. Não sei dizer se a adaptação faz jus ao livro, já que não o li, mas tenho que dizer que fiquei MUTO interessado pelo livro após ser deslumbrado pela imaginação, e inspiração, primorosa, do modo delicado e “religioso” como conectaram os personagens e a saga de cada um. 

Funcionando como mensagem espiritual, tanto para religiosos, quanto para ateus, “A Viagem” é uma reflexão sobre Deus, fé, destino, carma, reencarnação, dever, castigo e ligação espiritual entre várias pessoas, de várias diferentes épocas, e como cada uma se influencia direta, e indiretamente, em suas ações e reações. Para isso, a utilização dos mesmos atores em diferentes papéis é, nada menos, que GENIAL, já que complementa ainda mais o caráter de ligação e carma entre cada uma das histórias, tornando cada uma ainda mais poética e significativa quando tentamos correlacioná-las em questão do papel de cada personagem em cada uma das histórias, e como cada um foi responsável pelo que aconteceu a si mesmo em outra. 

É lógico que, se os atores não nos convencessem em todos os seus papéis, tudo estaria perdido. É incrível como TODO o elenco se encontra em perfeita sintonia com eles mesmos, e com a dimensão GRANDIOSA do escopo do filme. O trabalho de maquiagem é SENSACIONAL, conseguindo transformas negros em brancos, jovens em idosos, idosos em jovens, humanos em alienígenas, homens em mulheres, mulheres em homens, norte-americanos em coreanos, coreanos em norte-americanos, enfim, tudo é possível para a equipe de maquiagem de “A Viagem”. A maquiagem é usada TÃO bem que, em muitos momentos, perdemos completamente a noção de qual ator está por trás daquele personagem (como Halle Berry na história do “Cloud Atlas Sextet” e Hugh Grant na narrativa pós-apocalíptica). Até mesmo quando há uma certa estranheza, como Hugo Weaving como a enfermeira-chefe da narrativa do editor senil (que lembrou muito “Um Estranho no Ninho”), os diretores conseguem utilizar isso de forma inteligente para criar humor sutil. 

A maquiagem é tão primorosa quanto o design de produção, que consegue ser convincente em todas suas contrastadas épocas (desde o navio arcaico e claustrofóbico de 1849 até a comunidade tribal selvagem pós-apocalíptica em um a floresta hostil). Toda a arte do filme é criada com tanta delicadeza que, mesmo em ambientes realista como a década de 1970, quanto “fictícios”, como a assustadoramente tecnológica Nova Seul, os mínimos detalhes são preenchidos para denotar a escala grandiosa do filme. A própria fotografia é inteligente ao transitar entre paletas mais calorosas e saturadas (como em 1894 e no futuro de Nova Seul), e outras mais frias e dessaturadas (como no presente ou na década de 1970). 

Se tecnicamente o filme é impecável, a direção e edição não ficam atrás. É incrível como os diretores conseguiram conectar várias narrativas dissonantes de forma extremamente fluida, enriquecedora e cheia de expectativa. Como num bom livro, a edição sempre faz cortes em momentos certeiros de cada narrativa para nos deixar atenciosos sobre o que viria a seguir, já indo para outra cena que gera impacto diretamente. A tensão, e emoção, é crescente durante todo o filme, já que, além de mostrar os personagens em contato direto, ou por simbolismo, com algum fator de alguma história anterior, os diretores também são inteligentes ao incluir narrações de uma história em outra, mostrando mais ainda a ligação, e densidade, de seus significados. 

Também é digna de nota a confiança nos espectadores que os diretores exibem, já que eles vão acrescentando fatores em comum às narrativas ao poucos, sem escancarar a obviedade, e sem criar travellings que conectam a ação de uma história à outra diretamente. Tudo é exibido para que nós mesmos façamos nossas interpretações daqueles temas e daquelas ações, nos obrigando a pensar em como aquilo tudo está conectado de forma desafiadora e respeitável. 

A trilha sonora é outro ponto a se destacar, já que, além de nos fazer transitar entre aquelas histórias com coerência e sensibilidade, ela é narrativamente parte da trama, e realmente combina muito com tudo aquela que estamos vendo. A música do filme é hábil ao não ser maniqueísta e óbvia em sua emoção, usando da sutileza para ser um fator de sentimento a mais ali, e não sobre o que estamos vendo. Isso é respeitável. 

“A Viagem” não é um filme fácil de assistir, alguns vão se sentir intimidados pela ousada narrativa que exige muito dos espectadores, mas isso É cinema. É sempre lisonjeiro quando vemos um filme que pede que usemos nossa inteligência para interpretá-lo, é um exercício delicioso, principalmente quando as mensagens são tão profundas e filosóficas quanto aqui. 

Esnobado COMPLETAMENTE pelo público e pela Academia, principalmente nas categorias de trilha sonora, edição, maquiagem e roteiro adaptado, “A Viagem” é um filme como “Blade Runner”, “Watchmen” e “A Árvore da Vida”; filmes de mensagens desafiadoras e profundas que vão ser descoberto de acordo com o passar dos anos, já que a mentalidade da “massa” atual não está preparada para esse tipo de jornada cerebral.

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