terça-feira, 22 de janeiro de 2013

BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR (PARTE 1)

Por Olívia Braschi, no blog Sociedade Gnóstica Internacional

No decorrer dos anos foram conhecidas diversas adaptações cinematográficas para o clássico conto dos Irmãos Grimm "A Branca de Neve e os Sete Anões", desde o desenho de Walt Disney (sua primeira animação) até o recente "Espelho, Espelho Meu", que trouxe a consagrada Julia Roberts no papel da madrasta. Entretanto, foi surpreendente a versão de Rupert Sanders intitulada "Branca de Neve e o Caçador" (lançado em 2012), a qual apresenta uma grande carga de simbologias. O filme traz em seu elenco a atriz do momento Kirsten Stwart no papel da Branca de Neve, Chris Hemsworth como o caçador e a bela Charlize Theron encarna a rainha má, presenteando os expectadores com uma ótima atuação. A produção de Joe Roth também acertou em cheio ao escolher um cenário nórdico europeu, bem próprio da Idade Média, afastando-se da visão açucarada, romântica e idílica que normalmente é oferecida pelos cineastas.
O roteiro conta com a presença dos clichês básicos, porém com uma roupagem completamente diferente, rica em detalhes. O enredo apresenta alguns elementos importantes, como a predestinação da protagonista, bem como todo árduo caminho que deve ser trilhado a fim de se alcançar a Vitória. Contudo, a tônica da trama foi apresentada com uma energia fundamentalmente feminina, conversando de forma direta e reta ao coração de muitas mulheres, iluminando questões tão íntimas que talvez nem nós mesmas nos demos conta.
O filme inicia com a descrição do reino, onde durante um rigoroso inverno a rainha depara-se com uma rosa vermelha, a qual resiste bravamente a todo frio intenso, representando a força interna de suportar as adversidades. Ao acariciá-la, a rainha se perfura com o espinho e faz cair três gotas de sangue em meio à neve. Na sequência, nasce a linda princesa que se desenvolve com a luminosidade particular de toda criança, sendo ressaltada por sua mãe, pouco antes de morrer, a importância da beleza que vem do coração, a qual deve ser guardada e defendida. Toda mulher entende do que se trata essa beleza, a qual se transmite pela doçura de um olhar, pelo conforto das palavras e ternura das atitudes, alegria em acolher e o instinto de proteger. Essa beleza pulsa em cada ser feminino e é muito real, embora menos palpável do que a física, a qual é facilmente percebida, sem exigir de seu observador uma maior atenção ou sensibilidade.
Após o falecimento da esposa, o monarca erroneamente se engaja em uma batalha contra um exército sombrio, cujos seres se desmanchavam durante o ataque, apontando uma natureza desumana originada pela magia negra. Ao final da batalha, Ravenna é encontrada como "prisioneira" e, enfeitiçado por sua beleza, o Rei não percebe a emboscada, constituindo o matrimônio no dia seguinte, vindo a ser assassinado por ela na noite de núpcias. Importante ressaltar que se estabelece uma forte conexão entre a nova rainha e a princesa, fato apontado pela própria Ravenna em sua breve conversa com a pequena Branca de Neve, momentos antes de se casar. Tal ligação é incompreendida por ambas, mas permeia toda trama. As personagens representam dois opostos, a dualidade presente em toda mulher, cabendo a cada uma escolher, consciente ou inconscientemente, em qual vibração irá sintonizar durante a trajetória de sua vida. Segundo um provérbio chinês, "Cem homens podem formar um acampamento, mas é preciso uma mulher para se fazer um lar". Logo, não se pode negar que os ambientes e as relações, a princípio, são regidas pela mulher, sendo ela quem dá o seu tom a tudo e a todos à sua volta. Todos os seres humanos, independentemente do gênero, têm o poder de se conhecerem no momento em que interagem uns com os outros, e se nos auto-observarmos com atenção, crescemos cada vez que analisamos os reflexos nos espelhos. Portanto, nós podemos nos revolucionar através do outro e isso é fantástico! Todavia, a responsabilidade da mulher, da mãe, da fêmea é um pouco maior. Caso essa energia esteja em desequilibro, a mulher não afeta apenas a si mesma, mas a tudo que se cria em seu entorno. Na medida em que a mulher encontra a si mesma e permanecer em harmonia com a sua natureza, ela tem a capacidade de trazer leveza para o mundo masculino com a sua energia, seu movimento, seu olhar, seu sorriso, seu perfume, o tom da sua voz. Tanto a beleza interior quanto a exterior (e a saúde) são importantes e nenhuma delas deve ser negligenciada para que haja o equilíbrio efetivamente. Ademais, a beleza tem um enorme poder intrínseco a ela que, assim como outros quesitos, pode ser bem ou mal utilizada por cada uma de nós. Assim, o filme trabalha em cima desta mesma polaridade e a consequente reação do externo à qualificação que se dá à energia interna feminina.

A relação das mulheres com a natureza é especial e foi conhecida e trabalhada intensamente através de sociedades no decorrer da história da humanidade. Os índios americanos (tanto estadunidenses como andinos), comunidades celtas, egípcias e asiáticas sempre tiveram uma conduta respeitosa e religiosa com a Mãe Natureza, Mãe Divina, ou a Grande Mãe. As mulheres eram detentoras de um enorme conhecimento de plantas, flores e frutos que supriam desde a alimentação até a medicina. Algumas mais sensitivas iam além, dominando os quatro elementos e, através de muita disciplina interna e desenvolvimento espiritual, tornavam-se verdadeiras Sacerdotisas. Essa característica da energia feminina é bem representada no momento em que Ravenna assume o reinado, pois tudo e todos que estavam ao seu redor foram atingidos pela energia deturpada e envenenada, fazendo com que a natureza e o povo se voltassem contra eles mesmos. Tudo que era verde e belo se tornou seco e sem vida, quando toda a região entrou em um processo de "inverno permanente". O vilarejo se tornou feio, frio, escuro e úmido, com vestígio de morte e sinais de destruição, e cujos habitantes pareciam zumbis famintos. Ravenna se apresenta como uma rainha bela e fria, controlada, e já nas primeiras cenas fica evidente que a madrasta não apenas representa o arquétipo da bruxa, mas que se trata de uma verdadeira feiticeira que adquiriu várias habilidades e pertence a um alto escalão de magia. Seu maior poder é o de se alimentar da energia de jovens e belas moças, tendo sugado reinos inteiros no decorrer dos séculos. Tal vampirização constante é o que a mantém jovem, bela e viva, sendo que desde o início ela cede uma fração da vitalidade que rouba com o irmão Finn, seu último laço sanguíneo o único homem em quem confia.
Diversas vezes aparecem elementos que evidenciam o uso da magia de forma negativa, representada como cacos de vidro negro que lembram a textura do carvão e uma tinta preta e oleosa que parece petróleo, ambos originados pelo carbono retirado das profundezas da Terra. Em outra cena, Ravenna leva uma facada no abdômen e não sangra, voltando-se contra o seu agressor e fazendo cessar os seus batimentos cardíacos apenas com a imposição de sua mão. A rainha também ocupa um trono preto com caveiras talhadas, esta sempre cercada por cavaleiros negros, e tem o corvo como seu animal de poder, utilizando-o também em seus rituais. Importante frisar que o corvo é tido como símbolo contraposto da pomba, que representa o Espírito Santo. Ambos os pássaros são ícones da dualidade que preside a formação do universo físico e espiritual. Essa dialética é presente em todo o catecismo maçônico, por exemplo, sendo o universo, nesse contexto, um resultado do embate entre a luz e as trevas. Por conseguinte, são símbolos iconográficos das duas realidades que lutam no interior da matéria e no âmago do espírito humano, evocando Yang e Yin, positivo e negativo, relatividade e gravidade, forças que, por serem contrárias entre si, mantém a vida do universo em equilíbrio. Comumente o corvo é associado ao mal, pois ele, assim como o abutre, se alimenta de cadáveres, porém, no contexto da história, ele simboliza a treva necessária que dá nascimento à luz.
Contudo, dentre todos os seus amuletos, o maior trunfo da rainha, sem dúvida, é o espelho de metal, tão peculiar que ela dedica a ele um grande altar e um salão próprio, o que aponta um visível ao culto à vaidade. Quando invocado por ela, o espelho materializa um homem encapuzado em forma de metal líquido derramado, capaz de revelar verdades. Inicialmente ele aponta que mais um reino cai nos seus encantos, e questiona se não há fim para o seu poder e beleza. Neste momento, assim como no decorrer das cenas, percebe-se que a rainha permitiu que a beleza a escravizasse, usando todo o seu poder e tendo atitudes grotescas para garantir a sua jovialidade. Ela leva a sua necessidade por beleza física além da questão vida e morte, já que se tornando velha ela deixaria de ter o poder de manipular e seduzir os homens.
Em outra cena ela come o coração e as entranhas dos animais e toma um banho com o mais puro leite em plena época de pobreza severa, denunciando um cuidado estético exagerado e distorcido. Entretanto não precisamos ir até o mundo fantasioso dos contos para detectar comportamentos doentios, bastando observar as academias, shoppings, salões de beleza, clínicas de estéticas e salas de cirurgia. É fácil encontrar pessoas dispostas a flertar com a mutilação corporal e psíquica por conta da tal beleza, cujos padrões ficam cada vez mais inatingíveis num mundo de photoshop e distúrbios alimentares disfarçados de sucesso. Hoje mais do que nunca as mulheres (e homens) fazem o impossível para manter o viço da juventude, perseguindo-o desesperadamente desde a adolescência até a meia idade, quando entram em crise. Ao sentir o peso da idade no físico, talvez as pessoas consigam perceber que o corpo faz parte do Eu, já que é o templo onde temporariamente habita o Ser, mas não define a sua essência propriamente dita. Essa falsa ideia de que o Eu se resume no corpo traz uma sensação de inadequação e de necessidade de aprovação, as quais foram implantadas desde a infância pela sociedade, pela mídia e inclusive pelos pais. Todo o sistema gera em seus reféns uma insegurança e baixa autoestima crônicas e eternas, já que se persegue algo totalmente falso e irreal.
Todo esse ciclo vicioso nutre diversos Egos como o da vaidade, da luxúria, da inveja e do orgulho. Ironicamente, ao mesmo tempo o ciclo também é retroalimentado pelos Egos cada vez que estes são reforçados pelo mundo exterior, tornando-se uma prisão interior da qual poucos conseguem escapar. A libertação demora a chegar principalmente às mulheres, posto que carregam dentro de si um profundo pavor de envelhecerem e serem substituídas por uma versão mais nova e fresca, roubando-lhes a atenção do que realmente importa. Quantas de nós buscam treinar a força de vontade e cuidar com esmero da beleza interna? Quem hoje tem o tempo e a paciência de dedicar-se à boa manutenção do Templo Interior? Citando as palavras do caçador sobre a Floresta Negra, "a força dela se alimenta da sua fraqueza".
Por outro lado, a personagem da rainha também foi apresentada de uma forma bem humanizada, revelando que a sua loucura se pauta em impressões da infância e uma profunda mágoa gerada de um coração partido, implicando que haveria a possibilidade de qualquer um naquelas condições se tornar assim. Há uma cena em que ela lembra o dia em que a sua mãe fez um ritual com ela, ainda criança. A aldeia onde viviam estava sendo atacada e rapidamente a mãe cortou a sua mão, derramando três gostas de sangue no leite e a faz beber, afirmando que apenas a beleza poderia salvá-la, sendo a sua proteção e fonte de poder. Ali o feitiço foi lançado, que pelo sangue da mais bela ele foi feito e apenas com o sangue da mais bela ele poderia ser desfeito. Nota-se que isso ocorreu durante um momento onde a pequena sofria uma forte agressão, subentende-se que a mãe foi morta momentos depois. Logo, Ravenna associou o feitiço ao instinto de sobrevivência, e outras cenas indicam que ela e o irmão viveram sozinhos e em uma situação de privação, fome, pobreza e violência. Outra característica que se sobressai em suas cenas é que a rainha carrega dentro de si uma forte raiva e mágoa dos homens. Na própria noite de núpcias, ela conta que certa vez fora arruinada por um Rei como ele, o qual a escolheu para substituiu a sua esposa, que já era velha. Com o tempo ela também seria substituída, pois "os homens usam as mulheres, eles nos arruínam e quando terminam, eles jogam-nos para os cães como se fosse lixo". Em outro momento, antes de levar a facada do jovem, ela se aproxima e acaricia a sua face, elogiando a sua beleza e confessando que houve um tempo em que ela perderia o coração por um rosto como o dele e ele certamente iria quebrá-lo. Mais além, após se disfarçar de príncipe para envolver a Branca de Neve e dá-la maçã envenenada, Ravenna ironiza: "você vê, criança, o amor sempre nos trai".
Portanto, fica evidente que por conta das suas experiências negativas, ela percebeu o exterior como cruel e agressivo, afirmando ainda que "
vai dar ao mundo a rainha que ele merece", impiedosamente má. Ainda é oportuno questionar se lá no íntimo, as mulheres não identificariam em si alguns traços semelhantes aos da Ravenna? Em qualquer roda de amigas é comum encontrar mulheres que passaram por diversas desilusões amorosas, ou por uma única profunda e singular ainda na flor da idade. Tais eventos levaram-nas a enxergarem hoje o amor romântico de forma cínica e reduzindo-o a um jogo, cuja peça principal a ser manipulada é o homem, quando este ainda não é adversário.
Atualmente, o maior veneno nos relacionamentos é ingerido quando o casal compete entre si, disputando desde uma simples argumentação até as decisões mais importantes. Claro que a mulher deve estar atenta à forma como o seu amado a conduz, defendendo a sua natureza e individualidade. Suas opiniões devem ser consideradas e respeitadas, já que são ambos que sustentam o relacionamento, não se confundindo com uma submissão ou aceitação cega. Todavia, cada vez que a mulher cai na armadilha de se colocar em posição de confronto num torneio, ela sai do posto de companheira, ao lado do seu homem, para figurar como adversária. Esse comportamento surge de um impulso de sobrevivência ao se sentir atacada, ou cada vez que não consegue o que quer ou visualizar uma possível injustiça, ainda que ilusória. Enfim, não há qualquer chance de sucesso em resolver nenhuma questão, desencadeando-se os sentimentos de perda, mágoa, rejeição, raiva e vingança, formando um ciclo vicioso e transformando gradativamente a relação de benefício em prejuízo. Logo, verifica-se que a maneira como a mulher reage às suas decepções amorosas pode determinar em que vibração irá se conectar, sendo a rainha a representação do seu extremo negativo. A busca final do ser humano é a unidade no amor, mas não há outra forma de atingi-lo se não conhecemos os nossos próprios mecanismos auto-sabotadores da felicidade.
Como uma pessoa descrente do amor irá buscá-lo ou se sentir merecedora dele? Toda a amargura que se acumula a cada tentativa de relação malsucedida gera uma raiva do mundo e posteriormente uma enorme perda da vontade de viver. A rainha detém grande poder e sucesso a cada golpe que dá, porém é miseravelmente infeliz, e, como bem colocou Carl Jung, "Onde o amor impera, não há desejo de poder, e onde o poder predomina, há falta de amor; um é a sombra do outro". Por fim, a questão com a qual nos deparamos é como se pode curar um coração partido? Como eliminar os defeitos internos e derradeiramente os Egos que nos escravizam? Retornando ao caso em tela, o espelho fala à rainha que a pureza e inocência da Branca de Neve podem ser a sua destruição, mas também são a sua salvação, concentrados em seu coração, e quando ela o obtiver, nunca mais necessitará consumir a energia de nenhuma outra mulher. A rainha reage mal, baseada no orgulho ferido, por haver alguém mais bela do que ela, e na inveja, por querer ter para ela a beleza pura da garota, e busca o caçador para matá-la. A madastra quer ter o coração da jovem em mãos literalmente, embora a mensagem do espelho falasse de maneira metafórica em relação à energia mais sutil.
Em contraponto a toda essa escuridão, está a Branca de Neve, que viveu em cárcere desde a morte do pai, isolada em uma masmorra de uma torre, privada inclusive da própria imagem já que ela vê o seu próprio reflexo apenas nos momentos finais da trama. Nesse sentido, ela representa o Conceito Imaculado, puro ou a imagem da alma mantida na Mente de Deus; qualquer pensamento puro mantido por uma parte de vida, para e em favor de outra parte de vida; o ingrediente essencial a cada experiência alquímica sem o qual não haverá sucesso. Em outras palavras, pode-se concluir que o fato de não ter consciência de sua própria beleza exterior, Branca de Neve não passou pela experiência de Narciso. Sem a oportunidade de apaixonar-se pela sua própria imagem, ela não desenvolveu em si os substratos psíquicos do poder do físico, seja a vaidade, a luxúria, o orgulho ou inveja. Inclusive, a adolescente poderia estar profundamente revoltada com tudo que lhe foi feito e ter remoído uma sede de vingança no decorrer dos anos de prisão. Contudo, a clausura foi o que preservou a sua alma infantil, cuja fuga despertou o início do amadurecimento.
(continua...)

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